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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A Venezuela que eu vi | A Venezuela que eu vi (II) | Abril Abril

A Venezuela que eu vi

Regressar a Caracas é como regressar a casa. Quando se abre a porta automática das chegadas no Aeroporto Simón Bolívar, a atmosfera pesada de humidade e calor é a garantia de que chegámos às Caraíbas. Lá fora, Marciano Briceño, ex-responsável internacional da Juventude Comunista da Venezuela, e Carlos Casanueva, antigo combatente da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, braço armado do Partido Comunista do Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet, dão-me boleia até ao Hotel Limón, em Parque Central. Fazemos a viagem dentro de um Saipa, um carro iraniano baptizado de Turpial e que durante anos, graças ao governo de Hugo Chávez, pôde ser adquirido a preços vantajosos pelos venezuelanos. Nas curvas, o automóvel geme e Marciano diz-me que se trata de uma peça difícil de encontrar e que por isso é muito cara.

Desde que Estados Unidos e União Europeia aprovaram um conjunto de sanções contra a Venezuela, os bancos internacionais bloqueiam as transferências e impedem a importação de produtos de todo o tipo. As principais potências mundiais querem impedir o acesso a medicamentos, alimentos, materiais de construção, produtos de higiene e peças de automóveis, entre outros. O objectivo é asfixiar o povo venezuelano. Apertar-lhe o pescoço enquanto a imprensa diz que o problema é dos pulmões. Apesar de o governo tentar controlar alguns preços, os empresários e comerciantes, entre os quais muitos portugueses, tratam de açambarcar os produtos e inflacionar os preços.

Carlos Casanueva recorda o que aconteceu ao seu país quando ousou eleger um presidente com um programa eleitoral de esquerda. Durante meses, no Chile, viveu-se uma situação económica igualmente marcada pelo açambarcamento e escassez de alimentos, sabotagem dos sistemas de distribuição e transporte de mercadorias e o caos geral no abastecimento, acompanhados de uma campanha de ódio contra o governo pela imprensa de então, que provocavam mal-estar na população. Foi então que Salvador Allende decidiu criar as Juntas de Abastecimento e Controlo de Preços (JAP). Copiando o modelo do presidente que acabou morto dentro de um palácio presidencial bombardeado por militares golpistas, Nicolás Maduro anunciou, em 2016, os Comités Locais de Abastecimento e Produção (CLAP).




Na estrada que atravessa a cordilheira que separa o mar de Caracas atravessamos vários túneis. À entrada de cada um deles, surgem os rostos de Simón Bolívar e Hugo Chávez. Como quem não volta a casa há alguns anos, procuro saber se está tudo no sítio. Se Caracas continua a ser a mais bonita das cidades feias, se continua a ser a cidade da eterna Primavera, a cidade que encontrei de cada uma das vezes que cá vim desde que aqui vivi quase meio ano em 2008. Por este caminho, chegou José Martí a Caracas, em 1881, vindo de Nova Iorque, para estabelecer-se seis meses na capital venezuelana em busca de apoio político e económico para a causa da independência de Cuba. Sobre a sua chegada à que chamou a Jerusalém da América Latina, escreveu: «Contam que um viajante chegou a Caracas ao anoitecer e, sem sacudir a poeira do caminho, não perguntou onde se comia ou dormia, senão como se ia aonde estava a estátua de Bolívar. E contam que o viajante, sozinho com as altas e perfumadas árvores da praça, chorava diante da estátua que parecia que se mexia como um pai quando se aproxima de um filho.»

No primeiro dia, de manhã, regressei à mesma estátua onde um dia se ajoelhou José Martí. Depois de esperar pelo metro um terço do tempo a que estou habituado em Lisboa, vi a cidade à luz do dia. Esforço-me por me lembrar de tudo o que li e ouvi em jornais, rádios e televisões em Portugal e desato a olhar para todos os pormenores. Ao contrário do que espelha a maioria dos órgãos de comunicação social, o dia-a-dia na capital caribenha transcorre com normalidade. Não há qualquer sinal da crise humanitária. Nos dias anteriores à minha chegada, dizia-se que a maioria dos semáforos em Caracas estavam avariados. Passaram-se dias até encontrar um que não funcionasse. Os principais serviços públicos e o comércio estão abertos. Há jornais e canais de televisão da oposição. Nas ruas, vê-se propaganda de partidos contrários ao governo. Não há qualquer sinal de tensão como a que vivi nas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, assediadas pelo governo fascista da Ucrânia. Não há sinais de magreza extrema como vi entre camponeses pobres ou sinais da morte a rondar o rosto de crianças indígenas quando visitei a Colômbia no ano passado.

Há de facto uma crise económica e sabia-o de antemão. Como me contou Carlos Casanueva, não era novidade que os Estados Unidos e a União Europeia tentavam aplicar com a Venezuela a mesma estratégia que aplicaram com o Chile. A diferença é que contra Salvador Allende conseguiram comprar as forças armadas enquanto que na Venezuela os militares continuam a ser um pilar essencial na preservação do regime democrático e do processo bolivariano. Com a especulação fazem disparar a inflação e com as sanções tentam replicar na Venezuela o que fizeram com Cuba sabendo que, por razões históricas, políticas e sociológicas, é infinitamente mais difícil que o povo venezuelano resista a uma situação desse tipo. O certo é que me veio à memória a criminosa decisão, depois da Guerra do Golfo, do Conselho de Segurança da ONU de ampliar as sanções sobre o Iraque em 1991, com a consequente morte de mais de um milhão de pessoas, sobretudo crianças.

Pelas ruas e avenidas de Caracas, há murais por todas as partes. Hugo Chávez gostava de repetir a frase de José Martí de que «amor com amor se paga». Lembro-me da maré popular que o acompanhava em cada comício e de quando reconhecia que apesar de não ser capaz de retribuir tanto amor ele lhes pertencia e deles seria até morrer. E assim foi. Por todas as partes, sobretudo nas fachadas dos 2,4 milhões de apartamentos entregues às famílias mais pobres, aparece a assinatura do homem que só entrou para o exército porque queria ser jogador de basebol.


Mas, apesar da normalidade, a asfixia sente-se. Apesar das acusações, a verdade é que tudo o que depende do governo é praticamente grátis: os transportes, o combustível, a electricidade, o gás, a água, as telecomunicações. As rendas estão congeladas há anos e é praticamente impossível que um proprietário possa despejar um inquilino. Todos os preços que dependem de privados andam pelas nuvens. Por isso, com os cabazes quinzenais entregues pelas organizações dos CLAP em cada bairro, o governo tenta fazer chegar à população produtos básicos a preços acessíveis sem intermediários.

É uma guerra, dizem as forças de esquerda, que tem as suas vítimas. Foi o caso de vários portugueses donos de uma padaria no bairro de Altagracia, junto ao palácio presidencial. Um dia, a população fartou-se, invadiu a loja e chamou os serviços de fiscalização do Estado. Para além de inflacionar os preços, escondiam produtos para encenar a escassez de produtos. Conversei com um dos jovens que participou na expropriação da padaria e o resultado é magnífico. Produz-se mais pão e a preços mais acessíveis do que antes. Mas tiveram que resistir. Durante vários dias, geraram-se batalhas campais em frente à loja que antes se chamava Mansion Bakery e que agora se chama La Minka.



Por outro lado, é certo que os venezuelanos estão a emigrar mais do que antes. Toda a gente tem um familiar no exterior. Mas também é certo que esta questão está a ser instrumentalizada. Percentualmente, saíram tantos venezuelanos do país como portugueses do nosso durante o governo liderado por Passos Coelho e Paulo Portas. Para estas contas, as organizações internacionais juntam também todos aqueles que não estão a emigrar mas a regressar aos seus países. Como é o caso dos portugueses e de outras nacionalidades como a colombiana. Muitos deles regressam pouco depois à Venezuela em choque pelas condições que encontram noutros países. Mas o certo é que a emigração é um sintoma de uma crise que é real e tem culpados bem definidos.

Numa daquelas conversas que duram horas com o ex-ministro do Comércio de Hugo Chávez, Eduardo Samán, ficou claro que uma das derrotas do processo bolivariano foi não ter conseguido até ao momento, sobretudo durante o período de bonança, superar a dependência do petróleo e diversificar a economia. Hoje, o barril de petróleo abaixo dos 50 dólares é um rastilho de pólvora para um país em que mais de 90% das exportações são ouro negro. Ora, se a Venezuela importa quase tudo e se passou a receber menos de metade dos dólares que recebia antes, isto gerou uma profunda crise económica com menos consequências sociais, apesar de tudo, que aquelas de outros governos capitalistas anteriores apostados em preservar os lucros dos grandes grupos económicos e financeiros.

Durante cerca de duas semanas, de Caracas a Maracay e de Choroní a Chiriviche, conversei com empresários, operários, pescadores, livreiros, ex-ministros, deputados, comerciantes, jornalistas, autarcas, sindicalistas, sobretudo chavistas mas também opositores.

Está claro que a oposição nunca esteve tão fragilizada. Profundamente dividida, é criticada pela esmagadora maioria da população. Inclusivamente por aqueles que odeiam o processo bolivariano. O desespero é grande e pedem a intervenção externa. Por outro lado, a crise económica também tem efeitos políticos. Para uma mãe não importa muito se o responsável pela escassez de fraldas é o governo ou o bloqueio do imperialismo. Ela quer fraldas. É nesta brecha que cresce a contestação daquela camada da população que resgatada da miséria durante os governos de Hugo Chávez não pensou ver decair a sua qualidade de vida.

Ouvi várias pessoas definirem-se chavistas mas acusarem Nicolás Maduro de trair o legado do seu antecessor. Retenho uma conversa, também de horas, com um importante empresário. Fiel ao legado de Hugo Chávez e defensor de Nicolás Maduro, recordou um elemento importante. A Venezuela nunca invadiu nenhum país. A única vez que saíram forças do seu território foi para libertar outros países da ocupação espanhola. E deixou um aviso, quase como um canto poético. Se ousarem invadir a Venezuela, haverá contentores de armas espalhados por todas as praças Simón Bolívar que há no país. Lembrei-me das palavras de Pablo Neruda e deste povo que despertou com Hugo Chávez. «Padre, le dije, eres o no eres o quién eres? Y mirando el Cuartel de la Montaña, dijo: "Despierto cada cien años cuando despierta el pueblo"». Ver aqui.

Bruno Carvalho | Abril Abril | Sábado, 8 de Dezembro de 2018


A Venezuela que eu vi (II)


Há uma realidade martelada que embriaga e dá ressaca. Como cantou Victor Jara, «é difícil encontrar claridade na sombra quando o sol que nos ilumina descolora a verdade». Jornais, rádios e televisões repetem até à exaustão que há uma ditadura e uma crise humanitária na Venezuela. E eu flutuo numa realidade paralela. Parece que aterrei no país errado. Apesar do bloqueio económico à pátria de Bolívar e Chávez, não vejo a pobreza que já vi noutros países para onde jorram linhas de crédito. A Argentina que assinou, no ano passado, com o FMI o maior empréstimo de que há memória afunda-se num lodo de pobreza e miséria de que ninguém escreve. A Colômbia, por sua vez, fechou o ano com 252 opositores assassinados, entre líderes de movimentos sociais e activistas de direitos humanos.

Banho de chavismo em La Victoria

Então, deixo Caracas para trás e parto à procura dessa crise humanitária de que todos falam. A uma hora da capital, antes de chegarmos a Maracay, paramos em La Victoria, pequena cidade de 200 mil habitantes que deve o nome a uma importante batalha liderada pelo independentista José Félix Ribas contras as tropas de José Tomás Boves. Sem nada combinado, decidimos visitar um dos muitos ginásios verticais espalhados pelo país. Aquilo que era para ser uma pequena paragem acabou por ser uma manifestação espontânea da força do chavismo. Ao descobrirem que havia jornalistas estrangeiros que queriam conhecer aquele projecto desportivo e cultural, desceram utentes, funcionários, dirigentes, militares, entre mulheres, homens e crianças. Atropelavam-se para explicar o que significava o ginásio vertical e pediam-nos que mostrássemos a verdade ao mundo. Admito que foi difícil conter a emoção. Longe dos anos da revolução de Abril que não pude viver, via naquelas mulheres e homens os rostos dos que em 1974 fizeram de Portugal um mar de esperança. Do nada, desataram a cantar abraçados o Zeca Afonso venezuelano, Ali Primera. Levantavam os punhos e davam vivas a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro. Entusiasmados, conduziram-nos pelos diferentes andares do edifício.


Num dos pisos, dezenas de modernas máquinas de musculação e ginástica ocupavam sala ampla semelhante a qualquer ginásio europeu, com a diferença que aqui não se paga. Três jovens de toalha ao ombro surpreendidos pela visita riem-se com a pergunta sobre a fome na Venezuela. Um deles, levanta a t-shirt e mostra a barriga. Falam da importância do desporto como ferramenta de inclusão, sobretudo para a juventude. Subimos mais um andar e descobrimos um espaço para a dança e o teatro. Foi-se juntando mais gente e chegámos ao último piso onde se havia um campo de futsal com uma vista incrível sobre as montanhas ao redor. Este ginásio vertical construído pelo governo e gerido pelo conselho comunal é um pólo de participação democrática e de dinamização cultural.

De regresso ao primeiro piso, onde se situa o restaurante e um espaço amplo para espectáculos, exposições e debates, as cozinheiras trouxeram-nos doces tradicionais venezuelanos, vários músicos foram buscar uma harpa, um quatro, guitarra de quatro cordas, e de repente estava montada uma festa. O responsável local do Partido Comunista da Venezuela chegou com mais gente e acabámos por só conseguir abandonar o ginásio vertical várias horas e muitas conversas depois. Um dos jovens puxou-me à parte e levou-me a uma sala escondida com vários aparelhos preparados para servir de rádio local. Orgulhoso, explicou-me que dali se ia poder ouvir a revolução em todas as partes. Era já noite quando o nosso carro iraniano se fez à estrada depois de a população e os militares terem insistido que voltássemos no dia seguinte. Mas era impossível. Andava em busca de uma crise humanitária e de uma ditadura que todavia não tinha encontrado.


Em Choroní

Decidimos procurar nas praias. Fomos para Choroní e tivemos de atravessar as montanhas onde durante décadas se esconderam guerrilheiros das Forças Armadas de Libertação Nacional. Mas não havia qualquer sinal de desastre. A praia estava cheia de banhistas e de vendedores de cerveja, peixe e marisco. Não havia bolas de Berlim mas havia cocos apanhados no momento e bolos com cobertura de chocolate. Numa das mais bonitas praias da Venezuela, mulheres e homens tiravam selfies, crianças faziam buracos na areia, surfistas desafiavam ondas, algum mergulhador fazia pesca submarina. O mesmo que poderíamos ver em qualquer praia portuguesa mas com água a temperaturas bem mais agradáveis. Então, ouvimos dizer que havia uma assembleia de pescadores.


Sentados em cadeiras, no chão, na amurada, de pé, um terraço cheio de pescadores gritava e gesticulava. Todos se interrompiam, de forma absolutamente desordenada, e só se calavam quando o responsável eleito por eles pedia silêncio. De alguma forma que não consegui escrutinar, acabavam por se entender e tomavam decisões importantes. Era importante que os barcos que não fossem pescar não estivessem na boca do rio, e assim foi decidido. Era importante que todos dessem uma quota do pescado para que as crianças nas escolas pudessem comer peixe, e assim foi decidido. Era importante acabar com os especuladores e intermediários que faziam negócios à custa de quem trabalha, e assim foi decidido. Parecia uma democracia caótica mas mais democrática do que qualquer um dos nossos regimes ordenados. Cá fora, o porta-voz, acompanhado de dezenas de pescadores curiosos, explicou-me que havia de facto uma guerra económica e que só a organização popular é que podia contornar as consequências do bloqueio. E deixou claro o que faria se houvesse uma invasão. Trocaria as redes de pesca por uma arma para defender a sua pátria. Ver aqui.


Bruno Carvalho | Abril Abril | Sábado, 16 de Janeiro de 2019

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